Cláudia

Cláudia Rosário, 25 anos, assistiu ao homicídio da mãe quando tinha 11 anos, viveu com a irmã que descobriu ser vítima de violência doméstica e esteve acolhida durante cerca de dois anos na Casa de Abrigo Alcipe. Sempre de sorriso nos lábios, a Cláudia conduz-nos ao longo do seu percurso de vida e apresenta-nos uma mulher bem-sucedida, lutadora e acima de tudo com uma felicidade contagiante.

O que a levou à Casa de Abrigo Alcipe?

É uma história relativamente longa, que começa quando tinha 11 anos. Vivia apenas com a minha mãe, que faleceu à minha frente, vítima de violência doméstica. Fui viver com a minha irmã mais velha, que vivia numa zona relativamente próxima - uma aldeia no norte do país - e quando cheguei à casa da minha irmã percebi que também ela sofria de violência doméstica.

Ao contrário daquilo que aconteceu com a minha mãe, que para mim foi completamente um choque e não estava nada à espera, na casa da minha irmã era uma coisa constante. Para além disso, os sogros dela também viviam na mesma casa e como toda a minha família não era daquela zona, não havia qualquer suporte familiar, nem ninguém a quem pudéssemos pedir ajuda.

Em que momento decidem pedir ajuda?

Um dia estava a ir para a escola e vi um cartaz da APAV, tirei o número de telefone e não pensei muito mais nisso. Falei com uma professora e ficou ali um bocadinho parado, porque a professora sabia da situação, mas, devido a ser um meio muito pequeno, penso que as pessoas mesmo querendo fazer alguma coisa têm muito receio. E então, passaram-se meses sem que nada acontecesse, até que decidi mesmo ligar para esse número, na altura para o Gabinete de Apoio em Coimbra.

Conseguimos uma forma de a minha irmã chegar à fala com eles e foi-nos dito, de forma muito real, que seria muito difícil conseguir colocar quatro pessoas numa Casa Abrigo de forma imediata e passaram-se mais dois ou três meses até que recebemos um telefonema em que nos disseram: surgiram quatro vagas, não é uma coisa normal, portanto é agora.

Olhando a esta distância, quase parece completamente loucura, mas de facto a situação que estávamos a viver era completamente insuportável e a esta distância só consigo pensar que era muito provável que a minha irmã viesse a terminar da mesma forma que a minha mãe terminou e eu não queria isso de forma nenhuma.

Como foi a chegada à Casa de Abrigo Alcipe?

Foi uma grande mudança nas nossas vidas, era tudo completamente diferente, são outras pessoas que estão na mesma situação, todos os nossos pensamentos estão neste assunto e demora muito tempo até conseguirmos distanciar-nos e começar a encarar as coisas numa perspetiva mais positiva, mas a verdade é que se não existisse, tinha sido completamente impossível termos saído dali. Era completamente impossível a minha irmã, mesmo do ponto de vista financeiro, sair de casa com três miúdas e conseguir suportar todos os encargos associados, e, para além disso, havia toda a questão psicológica.

Lembro-me perfeitamente de estar no autocarro e de já ter informação sobre quem seria a pessoa que estaria à nossa espera. Lembro-me do momento de chegada à estação, do caminho que fizemos até à Casa de Abrigo, do momento exato em que entrámos, de ver o quarto. É uma sensação completamente indiscritível.

É tudo completamente novo, diferente, mas, ao mesmo tempo, aquela noite quando vais dormir, quando te deitas e pensas que correu bem, que conseguiste sair dali, acho que só consegues pensar que a partir dali não pode correr pior, porque tudo o que tinha que correr pior já estava para trás.

Como foi o apoio que recebeu na Casa de Abrigo?

Estamos a falar de um sítio onde as pessoas são vistas na sua identidade, na sua individualidade, reconhecidas por aquilo que são, ajudadas, acompanhadas, orientadas de acordo com aquilo que procuram na vida.

Nunca senti, em momento nenhum, que o facto de estar numa Casa Abrigo ia limitar de forma alguma a minha vida, muito pelo contrário, acho que tive sempre todo o apoio. Até hoje penso nas técnicas que nos acolheram quase como parte da família.

Com 11 anos assistiu à morte da sua mãe. Como se recupera?

Foi realmente um choque. Agora, consigo, de certa forma, digerir as coisas, mas na altura questionava tudo: se podia ter feito alguma coisa para travar a situação, ter pedido ajuda, se não estive suficientemente atenta, se a minha mãe eventualmente tinha dado alguns sinais que eu pudesse ter falado com a minha irmã ou outras pessoas.

É uma situação que vai marcar-me a vida toda. Principalmente, no meio deste processo todo, aquilo que verdadeiramente me perturba até hoje e é algo que eu gostava muito que quem está à frente destes processos tivesse em consideração é como se mete uma criança num tribunal, perante um coletivo de juízes, numa sessão de porta aberta, com o fulano que matou a tua mãe atrás de ti, a testemunhar aquilo que viste e fazerem perguntas que te levam a teres que te levantar e a olhar para ele.

Fala-se muito da questão da violência doméstica, das vítimas, mas há aqui uma parte também bastante oculta que é a questão das vítimas digamos laterais, principalmente nesta questão dos homicídios, em que muitas pessoas se esquecem que a pessoa que ficou, que assistiu, que viu, fica com traumas bastante graves para a vida.

O que encontrou em casa da sua irmã?

Quando cheguei a casa da minha irmã foi imediato, ouvi o meu cunhado dizer-lhe: "vê lá se não queres acabar da mesma maneira que a tua mãe". Depois de tudo o que aconteceu naquele dia, chegas e pensas que estás a entrar num sítio onde vais ser protegida, onde vais encontrar algum sossego e é devastador.

O meu cunhado era o meu pró-tutor, portanto a minha irmã não podia dar-me autorização para nada que ele não assinasse e chegou a uma altura em que ele próprio tentou afastar-me da minha família. Nunca foi violento fisicamente comigo, mas a violência que era feita sobre a minha irmã e as minha sobrinhas, era feita sobre mim.

É fácil, para uma vítima, libertar-se de uma relação deste tipo?

Não é fácil por vários motivos. O primeiro é porque, no caso da minha irmã, o marido exercia um controlo do ponto de vista financeiro, porque ela trabalhava no café dos sogros e não recebia qualquer tipo de ordenado, depois não havia qualquer suporte familiar e por fim toda a questão psicológica, porque a verdade é que quando uma pessoa se casa, é porque gosta daquela pessoa e eu acho que podes estar a levar porrada todos os dias, mas durante anos não estás a perceber muito bem o que está a acontecer e achas que aquilo faz tudo parte da relação e que tu fizeste alguma coisa errada.

Via a minha irmã num sofrimento brutal e até falar com ela sobre a possibilidade de sair de casa, acredito que ela nunca tivesse posto essa possibilidade. Apesar de a minha irmã ser nova - tem atualmente 38 anos -, foi criada num ambiente muito tradicional, onde casas e é para a vida e o divórcio não faz sentido.

Há uma série de barreiras que se metem no caminho, não é por acaso que a pessoa não pega nas coisas e vai embora no dia a seguir. Felizmente há pessoas que têm essa capacidade, essa força, condições para o fazer e familiares que suportam essa atitude, mas a verdade é que para a maioria das pessoas é completamente impossível sem o apoio da APAV.

Qual sente ser o impacto de todo este percurso na sua vida?

Toda esta história, este percurso na minha vida, fazem com que seja uma pessoa um bocado de extremos.

Por um lado, tenho esta coisa na cabeça de ter que ser independente e isso tem uma coisa boa: motiva, faz sempre pensar em coisas novas, encarar as coisas de uma forma muito mais positiva, se acontecer uma coisa má não interessa, amanhã vai ser um dia melhor, já aconteceram coisas muito mais graves. Mas, por outro lado também tem uma coisa bastante má, começas a ser um bocado neurótica, a achar que se estão a dizer-te uma coisa é porque tem coisas subentendidas. Por exemplo, com o meu namorado, ele trata-me muito bem, mas será que não há aqui qualquer coisa obscura que eu não estou a conseguir identificar, começas a ver coisas onde não estão e depois tens que fazer um esforço muito grande no dia-a-dia para conseguires atenuar isso e encontrar alguma paz.

Talvez, só para aí no último ano, consegui parar e pensar como me sinto bem neste momento, de certa forma libertar-me da culpa que sentia. Sentia muita culpa pela minha mãe ter morrido, achava verdadeiramente que podia ter feito alguma coisa.

Depois deste caminho, quem passou a ser a sua irmã?

Não tem nada a ver. Em termos físicos, quem vê uma foto da minha irmã antes e depois da Casa de Abrigo, não consegue acreditar que é a mesma pessoa. É uma evolução brutal, em termos de peso, cuidados, tudo. Em termos psicológicos, uma pessoa que não tinha qualquer autoestima, confiança, que não acreditava nela e que neste momento consegue fazer a sua vida normal e às vezes quase como se não tivesse acontecido. Acaba por ser um bocado irónico como a pessoa consegue mudar tanto, mas a verdade é essa, é completamente diferente e é muito bom.

Hoje, quem é a Cláudia?

É uma pessoa com paz, que procura viver todos os dias com muita intensidade, muita vontade de ter novas experiências, de aprender. Mas acima de tudo, muito atenta a quem está à minha volta. Acho que é quase uma coisa que está colada a mim neste momento, estar muito atenta a estes temas.

Fiz um licenciatura em Relações Internacionais, mestrado em Ciências da Comunicação e estou a fazer uma pós-graduação em Sales Management. No fundo, a forma como encaro a vida é no sentido de que nada acontece na vida por acaso e não devemos achar que temos uma rota definida e que não podemos desviar-nos dessa rota. Se aparece uma coisa nova na vida e se te entusiasma, deves segui-la.

Infelizmente, devido ao tempo e às circunstâncias, não me tenho dedicado tanto como gostaria a tentar ajudar também quem está na mesma situação, mas a verdade é que é algo que gostaria muito. Porque acho que, se todos dermos a nossa voz - dizermos aquilo que pensamos em relação àquilo que passámos -, talvez alguma coisa possa ser feita, porque não sei se as pessoas que legislam e as pessoas que estão à frente do processo de mudança têm plena consciência de tudo aquilo que se passa e de tudo aquilo que uma criança, que passa por uma situação destas, vive.