Comecei a namorar com o pai do meu filho mais velho, tinha 16 anos, estudava na altura num colégio de freiras. Toda a gente me avisava que tipo de pessoa que realmente ele era, quando se está naquela altura de apaixonada tudo é amor à nossa frente, uma pessoa ilude-se um bocadinho, até que quando tinha 18 anos engravidei. Tive o meu João ainda estava a estudar, continuei a estudar até ele ter 6 meses e até aí nunca me tinha apercebido de nada, quer dizer fazia-me esperas, perseguia-me, inventava-me coisas mas eu sempre naquela de está apaixonado é amor, nunca achei que fosse uma coisa má nem que chegasse ao ponto que chegou.
O João tinha 6 meses, em Agosto fui para a casa da mãe dele, ele proibiu-me de continuar a estudar, fiquei a tomar conta da mãe dele que tinha alzheimer. Ele bebia constantemente, saia, chegava a casa e fazia barulho, andava a conduzir bêbado. O João fez referência a isso na escola e fomos chamados à CPCJ. Fizemos um plano para nos organizarmos de forma a que as coisas melhorassem tá claro que tanto um como o outro nos comprometemos com certas e determinadas coisas embora não fosse bem a realidade. A gente podia falar uma coisa e sentir outra, fez tratamento ao álcool e essas coisas todas, nunca deu resultado.
As coisas que me dizia quando estava bêbado começou a dizê-las quando estava bem, desde agressões verbais, empurrões, bofetadas. Uma altura, um bom 25 de Dezembro, as coisas correram muito mal, ele saiu e quando chegou a casa, perdido de bêbado, fez o que quis e bem lhe apeteceu - bateu-me, tratou-me mal, chamou-me vários nomes - e o João antes de ele chegar a casa tinha-me perguntado se podia dormir descansado. As palavras do João realmente não me saiam da cabeça, eu sou mãe dele, eu é que tenho que zelar pelo bem-estar dele e isso levou-me a pedir ajuda no dia 26 de Dezembro.
Foi horrível. Ele saiu e eu fiz as malas do João: pus fato de treino, camisola interior, cuecas, meias em molhinhos para segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado e domingo, a minha agarrei ao monte e meti qualquer coisa lá para dentro e foi o que trouxemos. Estava a custar-me bastante levar o João porque na inocência dele, estava tudo tudo bem.
O meu João adorou. Para mim foi uma coisa muito estranha, não pelo facto de ser uma instituição e ter mais pessoas a viver naquela casa, mas pelas regras, o facto de a gente ter que comunicar os passos que dava, partilhar tarefas, é muito diferente. Não conhecia a zona, não conhecia nada, foi um choque..
A primeira vez que realmente me senti livre fui ao Dolce Vita com outra moça lá da casa e o telefone não tocou e isso fez-me tanta confusão, porque o meu telefone não parava de tocar anteriormente. Tinha que dar satisfação de tudo e então naquele dia, o facto de o telefone não tocar, de podermos sair à hora que queríamos foi uma sensação de liberdade e ao mesmo tempo foi uma sensação muito estranha. Não sabia bem o que era aquela liberdade toda, foi começar a conhecer-me a mim, foi um processo complicado.
Aprende-se. Aprendi a conviver com outras pessoas, porque quando estava naquela relação não convivia com ninguém, era prisioneira da minha própria casa. E ali tinha a liberdade de ser eu, também fazíamos terapias de grupo que ajudavam um bocadinho a olhar para nós, olhar para o nosso passado, projetar o nosso futuro. Tudo isto ajuda-nos a seguir em frente, não a esquecer, que a gente não esquece e há sempre alturas que a gente pensa que não ficámos marcados, mas marca.
Aprende-se a viver com essas marcas. Aprende-se a crescer. A gente aprende a ser gente, a dar valor a nós próprios. Aprende a fazer as coisas de forma diferente. Aprendemos a ver certas coisas que nos passaram ao lado. Crescemos.
Foi um bocado turbulenta. A Casa é boa, ensina-nos muitas coisas, temos apoio de muita gente para conseguirmos orientar a nossa vida de forma diferente, mas chega a uma altura em que a gente quer seguir a nossa vida, queremos desprender-nos um bocadinho do passado e o facto de estar na Casa faz-nos recordar um bocadinho o porquê de lá estarmos, o passado está sempre lá.
Chegou a uma altura que eu disse: já tenho trabalho, tenho namorado, acho que está na altura de sair, de realmente seguir caminho, saber o que é pagar uma renda, o que é ter a responsabilidade no fim do mês de pagar água, luz e futebol.
Ainda hoje falo com as pessoas, tanto com as Técnicas como com as colegas com quem vivi. Fiz amizades, grandes amizades, portanto nem tudo é mau.
Ajudamo-nos um bocadinho umas às outras. A gente fala ainda hoje, ou seja, eu saí já vai fazer quase três anos e a gente ainda fala das coisas. A ligação que a gente tem não é um passado comum, não crescemos juntas, não temos histórias juntas, as histórias que temos foram criadas a partir do nosso corte com o passado. Daqui para a frente é que temos uma ligação.
É preciso muita coragem, é preciso querer muita coisa, ter sonhos, é preciso ter alguém também que nos apoie porque às vezes a coragem não é tudo. Se eu não tivesse tido alguém que me puxasse, que dissesse “venha, agente ajuda” não tinha conseguido. Já vi gente a estar na Casa e a regressar. Já ouvi histórias de pessoas que regressaram e qual foi o final triste delas. É preciso, para além da coragem, ter alguém ao nosso lado, que que nos diga que somos capazes, porque eu vivi 10 anos a pensar que não era capaz, 10 anos a pensar que não era nada, que não servia para nada porque era isso que ele dizia. Vivi 10 anos sem conhecer a Juliana praticamente.
A mim ajudou-me a criar base para que eu conseguisse sair e continuar a minha vida. Ajudou-me a ganhar confiança, a conhecer-me e a saber que eu sou capaz e que aquilo que a gente passou é mau mas não é o fim. A gente consegue, somos muito novas, tenhamos a idade que tivermos, para nos prendermos a uma vida de miséria.
Vou conhecendo e vou-me surpreendendo a mim própria. Esta Juliana é uma Juliana que não desiste, que sabe bem aquilo que quer e sabe alcança-lo. Ainda tem muito que trabalhar, mas sabe que tudo é possível. Uma Juliana que sabe gostar de si.
Tenho tantos sonhos para o futuro, tanta coisa para fazer que é um dia de cada vez. Eu vivo um dia de cada vez e projetar as coisas sim, mas com os pés bem assentes na terra.