Juliana

Juliana, 32 anos, viveu durante 10 anos numa relação onde foi vítima de violência doméstica. Acolhida na Casa de Abrigo da APAV durante mais de um ano, saiu há quase 3 anos para se encontrar e conhecer. Hoje, sentada no sofá do quarto dos brinquedos dos seus filhos, Juliana está feliz, vive com o seu namorado, tem dois filhos e trabalha com crianças e jovens adultos com deficiência

O que a levou à Casa de Abrigo Alcipe?

Comecei a namorar com o pai do meu filho mais velho, tinha 16 anos, estudava na altura num colégio de freiras. Toda a gente me avisava que tipo de pessoa que realmente ele era, quando se está naquela altura de apaixonada tudo é amor à nossa frente, uma pessoa ilude-se um bocadinho, até que quando tinha 18 anos engravidei. Tive o meu João ainda estava a estudar, continuei a estudar até ele ter 6 meses e até aí nunca me tinha apercebido de nada, quer dizer fazia-me esperas, perseguia-me, inventava-me coisas mas eu sempre naquela de está apaixonado é amor, nunca achei que fosse uma coisa má nem que chegasse ao ponto que chegou.

O João tinha 6 meses, em Agosto fui para a casa da mãe dele, ele proibiu-me de continuar a estudar, fiquei a tomar conta da mãe dele que tinha alzheimer. Ele bebia constantemente, saia, chegava a casa e fazia barulho, andava a conduzir bêbado. O João fez referência a isso na escola e fomos chamados à CPCJ. Fizemos um plano para nos organizarmos de forma a que as coisas melhorassem tá claro que tanto um como o outro nos comprometemos com certas e determinadas coisas embora não fosse bem a realidade. A gente podia falar uma coisa e sentir outra, fez tratamento ao álcool e essas coisas todas, nunca deu resultado.

As coisas que me dizia quando estava bêbado começou a dizê-las quando estava bem, desde agressões verbais, empurrões, bofetadas. Uma altura, um bom 25 de Dezembro, as coisas correram muito mal, ele saiu e quando chegou a casa, perdido de bêbado, fez o que quis e bem lhe apeteceu - bateu-me, tratou-me mal, chamou-me vários nomes - e o João antes de ele chegar a casa tinha-me perguntado se podia dormir descansado. As palavras do João realmente não me saiam da cabeça, eu sou mãe dele, eu é que tenho que zelar pelo bem-estar dele e isso levou-me a pedir ajuda no dia 26 de Dezembro.

Como foi a saída de casa?

Foi horrível. Ele saiu e eu fiz as malas do João: pus fato de treino, camisola interior, cuecas, meias em molhinhos para segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado e domingo, a minha agarrei ao monte e meti qualquer coisa lá para dentro e foi o que trouxemos. Estava a custar-me bastante levar o João porque na inocência dele, estava tudo tudo bem.

Recorda-se do primeiro dia na Casa de Abrigo?

O meu João adorou. Para mim foi uma coisa muito estranha, não pelo facto de ser uma instituição e ter mais pessoas a viver naquela casa, mas pelas regras, o facto de a gente ter que comunicar os passos que dava, partilhar tarefas, é muito diferente. Não conhecia a zona, não conhecia nada, foi um choque..

Qual foi a sensação de se libertar da relação de violência que vivia?

A primeira vez que realmente me senti livre fui ao Dolce Vita com outra moça lá da casa e o telefone não tocou e isso fez-me tanta confusão, porque o meu telefone não parava de tocar anteriormente. Tinha que dar satisfação de tudo e então naquele dia, o facto de o telefone não tocar, de podermos sair à hora que queríamos foi uma sensação de liberdade e ao mesmo tempo foi uma sensação muito estranha. Não sabia bem o que era aquela liberdade toda, foi começar a conhecer-me a mim, foi um processo complicado.

O que se retira de uma experiência assim?

Aprende-se. Aprendi a conviver com outras pessoas, porque quando estava naquela relação não convivia com ninguém, era prisioneira da minha própria casa. E ali tinha a liberdade de ser eu, também fazíamos terapias de grupo que ajudavam um bocadinho a olhar para nós, olhar para o nosso passado, projetar o nosso futuro. Tudo isto ajuda-nos a seguir em frente, não a esquecer, que a gente não esquece e há sempre alturas que a gente pensa que não ficámos marcados, mas marca.

Marca, mas ultrapassa-se?

Aprende-se a viver com essas marcas. Aprende-se a crescer. A gente aprende a ser gente, a dar valor a nós próprios. Aprende a fazer as coisas de forma diferente. Aprendemos a ver certas coisas que nos passaram ao lado. Crescemos.

Como foi a saída da Casa de Abrigo?

Foi um bocado turbulenta. A Casa é boa, ensina-nos muitas coisas, temos apoio de muita gente para conseguirmos orientar a nossa vida de forma diferente, mas chega a uma altura em que a gente quer seguir a nossa vida, queremos desprender-nos um bocadinho do passado e o facto de estar na Casa faz-nos recordar um bocadinho o porquê de lá estarmos, o passado está sempre lá.

Chegou a uma altura que eu disse: já tenho trabalho, tenho namorado, acho que está na altura de sair, de realmente seguir caminho, saber o que é pagar uma renda, o que é ter a responsabilidade no fim do mês de pagar água, luz e futebol.

Ainda hoje falo com as pessoas, tanto com as Técnicas como com as colegas com quem vivi. Fiz amizades, grandes amizades, portanto nem tudo é mau.

Essas amizades também ajudam a ultrapassar as coisas menos boas?

Ajudamo-nos um bocadinho umas às outras. A gente fala ainda hoje, ou seja, eu saí já vai fazer quase três anos e a gente ainda fala das coisas. A ligação que a gente tem não é um passado comum, não crescemos juntas, não temos histórias juntas, as histórias que temos foram criadas a partir do nosso corte com o passado. Daqui para a frente é que temos uma ligação.

É preciso muita coragem?

É preciso muita coragem, é preciso querer muita coisa, ter sonhos, é preciso ter alguém também que nos apoie porque às vezes a coragem não é tudo. Se eu não tivesse tido alguém que me puxasse, que dissesse “venha, agente ajuda” não tinha conseguido. Já vi gente a estar na Casa e a regressar. Já ouvi histórias de pessoas que regressaram e qual foi o final triste delas. É preciso, para além da coragem, ter alguém ao nosso lado, que que nos diga que somos capazes, porque eu vivi 10 anos a pensar que não era capaz, 10 anos a pensar que não era nada, que não servia para nada porque era isso que ele dizia. Vivi 10 anos sem conhecer a Juliana praticamente.

O apoio da APAV ajuda?

A mim ajudou-me a criar base para que eu conseguisse sair e continuar a minha vida. Ajudou-me a ganhar confiança, a conhecer-me e a saber que eu sou capaz e que aquilo que a gente passou é mau mas não é o fim. A gente consegue, somos muito novas, tenhamos a idade que tivermos, para nos prendermos a uma vida de miséria.

E agora, já conhece?

Vou conhecendo e vou-me surpreendendo a mim própria. Esta Juliana é uma Juliana que não desiste, que sabe bem aquilo que quer e sabe alcança-lo. Ainda tem muito que trabalhar, mas sabe que tudo é possível. Uma Juliana que sabe gostar de si.

O que deseja para o futuro?

Tenho tantos sonhos para o futuro, tanta coisa para fazer que é um dia de cada vez. Eu vivo um dia de cada vez e projetar as coisas sim, mas com os pés bem assentes na terra.