Carmina

Carmina, 56 anos, foi vítima de violência doméstica durante dois anos, tendo estado acolhida na Casa de Abrigo Alcipe durante quase um ano. O caminho sinuoso que percorreu deu-lhe a força que nunca pensou conseguir para ultrapassar as barreiras que a vida lhe impôs. Hoje - mulher, mãe e avó - é feliz.

O que a levou à Casa de Abrigo Alcipe?

O meu ex-marido arranjou uma namorada e a partir daí começou a dar-me maus tratos psicológicos. Aguentei durante dois anos. Implicava com tudo, não lhe podia perguntar nada ou dar uma sugestão. Quando queria dizer alguma coisa, nunca estava de acordo e chateava-se. Então, para não chatear o senhor comecei a concordar sempre com tudo o que dizia.

Tínhamos uma loja em frente a casa e um dia, depois do expediente, perguntei-lhe por que tinha vendido os pinheiros sem me dizer nada. Revoltou-se e disse que ia ao escritório buscar a pistola e dar cabo de mim. Da maneira como ele se exprimiu, se tivesse ali ficado, não estava hoje aqui a contar a história. Ainda hoje, fico assustada com qualquer coisa, aquilo traumatizou-me para o resto da vida, vai morrer comigo.

Eu abria sempre a loja, porque ele levantava-se em cima da hora. [Um dia], estava a fazer a faturação, ele abriu a porta muito bruscamente e perguntou-me o que estava ali a fazer. “Eu estou aqui há 30 anos", disse-lhe. Tudo o que estava em cima da secretária foi parar ao chão, deu pontapés a tudo o que tinha à frente e eu chamei a polícia, mas polícia demorou a chegar. A polícia registou a ocorrência mas nada foi feito, ele também era uma pessoa muito conhecida na zona.

Procurou a ajuda da família ou amigos?

Quando fui ameaçada de morte, a não ser à minha cunhada, não disse a mais ninguém, só mais tarde é que contei a uma irmã minha. Não queria que a minha família soubesse. Sempre fomos vistos como um casal feliz e estava sempre tudo bem, éramos um casal invejado por muita gente e só mais tarde, quando já não aguentava mais, decidi contar a essa minha irmã que comunicou à minha irmã mais velha que foi comunicar à APAV.

Como ele era uma pessoa conhecida e tínhamos uma casa aberta, não queria divulgar o que se estava a passar. Sentia vergonha de ir dizer a alguém ou até à minha família o que se estava a passar. Não é nada fácil a abrir um livro que não era o livro que eu queria abrir. O livro da parte boa estava aberto, agora aquela parte estava fechada a sete chaves, mas aquilo que eu estava a passar foi mais forte do que eu e tive mesmo que ir à APAV.

O que a fez tomar a decisão de sair de casa?

Quando me ameaçou com a pistola, na APAV perguntaram-me se já tinha pensado que estava em perigo de vida e que tinha de sair de casa. Tinha a minha filha, que era e é tudo para mim, e deixá-la foi um trauma muito grande, mas eu tive que me decidir. É preciso muita força e eu tive que a ganhar. Arranjei energia e muita força para continuar em frente, apesar de não ser fácil, mas não tive outra solução.

Qual foi a primeira impressão da Casa de Abrigo?

Fui muito bem acolhida. Estive lá quase um ano. Não é fácil estarmos numa Casa de Abrigo, porque, por vezes, pensava na minha casa, na minha filha, mas como fui tão bem acolhida superei muito bem.

Como foi libertar-se de uma vida assim?

Eu dizia que era feliz no meu casamento, mas não era. Não fui uma mulher para ele, era uma criada. Aquilo foi um pesadelo que vivi durante dois anos e ter-me libertado foi ótimo e quando saí da Casa de Abrigo cheguei à conclusão de que afinal não tinha sido feliz. Aquele sossego de que precisava, aquela paz que não tinha há mais de dois anos para mim foi ótimo. Aprende-se muito pelo lado positivo.

E hoje, quem é a Carmina?

Esta Carmina hoje é diferente, sempre com um sorriso, revoltada ao mesmo tempo, mas tento ultrapassar isso. Tenho alturas em que penso como é possível ter trabalhado tanto ao longo da vida e hoje se quero ter uma casa tenho que estar a pagar renda. Apesar de não pensar sempre nisso, revolta-me, tento pôr para trás das costas.